MEMENTO - BRUNO BAPTISTELLI

 
 

Memento - Bruno Baptistelli - Foto Ana Pigosso

 

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A exposição individual do artista paulistano Bruno Baptistelli (1985) na plataforma cultural 55SP intitulada "Memento" (objeto que evoca algo ou alguém; recordação) se revela ao público em uma única obra. Apresentada em uma sala que subverte a ideia de cubo branco expositivo, asséptico, tradicional, neutro, optou-se por um dispositivo próximo à caixa preta teatral, escura, orientada a um objeto/cena, onde dentro de um expositor transparente com luz direcionada, o objeto se destaca no centro da sala. Feito a partir de um molde da dentição do artista, o objeto em ouro é elemento principal da proposição, e dialoga sobre bucalidade, estética e permanência.

Entende-se por bucalidade a expressão dos trabalhos sociais que a boca humana realiza, abordando sua subjetividade, extrapolando seu conceito anatômico. Ter dentes brancos e alinhados socialmente denotam saúde, sendo utilizado como parametro no período da escravidão para valorização ou depreciação humana. Os negros escravizados embarcados na provincia litoranea de Benguela na Angola, tinham como tradição cultural serrar os dentes insisivos, surgindo dai o termo abrasileirado "banguela" para se reportar a pessoas com ausencia de algum dente. Tendo um padrão, o que foge a regra é questionado, sendo assim a proposição do artista para dentes dourados confronta os ideais de bom-gosto.

A formação do imaginário do dente de ouro na cultura brasileira é incerta. Na atualidade fazem parte da complexa identidade cultural cigana, comunidades dispersas por todo o Mundo e que chegaram ao Brasil em situação de degredo, vindo junto com os portugueses ainda no século XVI. Muitos se instalaram em Minas Gerais e frequentemente eram associados a estereótipos de perturbadores da ordem. Durante o Ciclo do Ouro já no século XVIII, em que a extração e exportação de ouro e a escravidão eram as maiores fontes econômicas, existia o ofício de barbeiro (cirurgião pouco treinado que realizava procedimentos, incluindo extrações dentárias), porém nenhum relato da prática de adorno ou uso ortodontico do ouro. 

Não muito distante surgiam os primeiros “dentistas” legalizados do Brasil na cidade de Salvador, de classe sociais baixas, contando inclusive com negros escravizados. Existe uma iconografia de Jean-Baptiste Debret publicada em 1835 intitulada "Boutiques de Barbieri" na qual são representados trabalhadores negros e em uma placa consta  "barbeiro, cabellereiro, sangrador, dentista e deitão bichas". Hoje a profissão de odontólogo é majoritariamente ocupada por pessoas de classes sociais mais abastadas e consequentemente brancas.

Um dos primeiros escritores a utilizar a referência dente de ouro na criação de seus personagens foi o poeta modernista Menotti Del Picchia (1892-1988), participante do grupo dos cinco  ao lado de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, foi um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Ele publicou " Dente de Ouro - Romance de Costumes Nacionais" inicialmente intitulado "A Suprema Façanha" (1921), história que fala do triângulo amoroso de um "fora-da-lei" , Maria Luíza e um delegado, sendo o anti-herói o personagem a ornar o tal dente dourado. Outro exemplo de uso da imagem do dente de ouro na literatura aparece na peça teatral "Boca de Ouro" (1959) de Nelson Rodrigues (1912-1980), na qual a homônima Maria Luísa, conta três versões de um crime cometido pelo bicheiro que havia substituído todos seus dentes em perfeito estado por dentes de ouro. Tanto Menotti quanto Nelson afirmavam que os personagens foram inspirados em pessoas reais.

Frequentes na cultura norte-americana dos anos 70 e 80, os "grillz", joias dentais removíveis, ou não, compostas por metais nobres, diamantes e pedras preciosas ficaram populares em meados dos anos 2000, através da cultura Hip-Hop. A partir daí a imagem ora associada à marginalização dá lugar novamente a um status de riqueza, podendo as jóias chegarem a valer mais de 1 milhão de dólares. 

Evidências arqueológicas a partir de arcadas dentárias datando c.4000 a.C. encontradas nas Filipinas mostram o quanto é antiga a utilização do ouro como ornamento dental. Tais modificações tinham motivações complexas e lidavam com questões de identidade cultural, embelezamento, porém ainda não tinham aspirações protéticas funcionais. Tais achados atravessaram todo esse tempo e hoje servem como base para compreender melhor as culturas antigas. 

A arcada dentária é também uma identidade, onde cada indivíduo possui uma conformação única, sendo utilizada pela ciência forense para identificação de pessoas. Sendo assim o objeto apresentado também é uma espécie de digital do artista. No momento que é da vontade do artista, após sua morte ser enterrado portando os dentes de ouro, tal prótese adquire característica semelhante a uma máscara mortuária. Fato interessante na Lei das XII Tábuas romana permitia o enterramento de ouro, só se ele estivesse nos dentes a fim de evitar saques nas sepulturas.

 Sugere-se a entrada de uma pessoa por vez na sala expositiva.

texto Ademar Britto
Serviço: 

Data e horário do eventoAbertura: 02 de Abril - 11h às 19h

Periodo Expositivo: 06 a 30  de abril 3a a 6a das 11h as 19h sabados das 11h as 17h 

Local: Espaço CAMA - Alameda Lorena 1257 – casa 4 – Jardins, São Paulo - SP

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The solo exhibition of Bruno Baptistelli (São Paulo,1985) at 55SP cultural platform entitled "Memento" (object that evokes something or someone; remembrance) is revealed to the public in a single work. Presented in a room that subverts the idea of ​​a white, aseptic, traditional, white cube, he opted for a device close to the theatrical stage, dark, object/scene oriented black box, where inside a transparent display with directed light, the object stands out in the center of the room. Made from a mold of the artist's dentition, the gold object is the main element of the proposition, and dialogues about buccality, aesthetics and permanence.

Buccality is understood as the expression of the social work that the human mouth performs, approaching its subjectivity, extrapolating its anatomical concept. Having white and socially aligned teeth denotes health, being used as a parameter in the period of slavery for human appreciation or depreciation. The enslaved blacks embarked in the coastal province of Benguela in Angola, had as a cultural tradition sawing their incisor tooth, hence the Brazilian term “banguela” (toothless) came to refer to people with missing teeth. Having a pattern, what escapes the rule is questioned, thus the artist's proposition for golden teeth confronts the ideals of good taste.

The formation of the golden tooth imagery in Brazilian culture is uncertain. Currently part of the complex gypsy cultural identity, communities dispersed throughout the world and who arrived in Brazil in exile, coming together with the Portuguese in the 16th century. Many settled in Minas Gerais and were often associated with stereotypes of civil disruptors. During the Gold Cycle in the 18th century, in which the extraction, export of gold and slavery were the main economic sources, there was the barber trade (a poorly trained surgeon who performed procedures, including dental extractions), but no reports of the adornment practice or orthodontic use of gold.

Not far away, the first legalized “dentists” in Brazil appeared in the city of Salvador, coming from low social classes, including enslaved blacks. There is an iconography by Jean-Baptiste Debret published in 1835 entitled "Boutiques de Barbieri'' in which black workers are represented and on a plaque it says "barbeiro, cabellereiro, sangrador, dentista e deitão bichas" Today, the profession of dentist is mostly occupied by people from wealthier social classes and consequently white.

One of the first writers to use the golden tooth reference in the creation of his characters was the modernist poet Menotti Del Picchia (1892-1988), a member of the group of five alongside Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade and Mário de Andrade, was one of the creators of the 1922 Modern Art Week. He published "Golden Tooth - Romance of National Costumes" initially titled "A Suprema Façanha" (1921), a story that talks about the love triangle of an "out-law", Maria Luíza and a sheriff, the anti-hero being the character to adorn that golden tooth. Another example in the use of the image of the golden tooth in literature appears in the play "Boca de Ouro" (1959) by Nelson Rodrigues (1912-1980), in which the homonymous Maria Luísa tells three versions of a crime committed by the bicheiro who he had replaced all of his pristine teeth with gold teeth. Both Menotti and Nelson claimed that the characters were inspired by real people.

Frequent in North American culture in the 70s and 80s, "grillz", removable or not, dental jewelry, composed of noble metals, diamonds and precious stones, became popular in the mid-2000s, through Hip-Hop culture. From there, the image now associated with marginalization gives way again to a status of wealth, with the jewels being worth more than 1 million dollars.

Archaeological evidence from dental arches dating to c.4000 BC. found in the Philippines show how ancient the use of gold as a dental ornament is. Such modifications had complex motivations and dealt with issues of cultural identity, beautification, but still did not have functional prosthetic aspirations. Such findings spanned all this time and today serve as a basis for a better understanding of ancient cultures.

The dental arch is also an identity, where each individual has a unique essence, being used by forensic science to identify people. Therefore, the object presented is also a kind of digital artist. When it is the artist's will, after his death he is buried with gold teeth, such a prosthesis acquires a characteristic similar to a death mask. Interesting fact in the Roman Law of the XII Tables allowed the burial of gold, only if it was in the teeth in order to avoid looting of the graves.

 Text Ademar Britto

Date and Time

Opening : 02 de Abril - 11h às 19h

Exhibition: 06 a 30  de abril 3a a 6a das 11h as 19h sabados das 11h as 17h 

Address: Espaço CAMA - Alameda Lorena 1257 – casa 4 – Jardins, São Paulo - SP


 
 
 
 
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